Mal estreou na Netflix e Enola Holmes já é um dos assuntos mais comentados do momento - inclusive fazendo algumas pessoas descobrirem que, a despeito da minha fé, Sherlock Holmes é um personagem fictício, e não histórico.
- Mas a Enola existiu?
- Não, ela é fictícia.
Eu tive essa conversa com meu marido, e é lógico que eu entendi o que ele queria dizer. Mas ele não disse "a Enola é cânone? Ela é personagem original de Conan Doyle?"; não, ele perguntou se ela existiu.
A força de Sherlock Holmes, né, meuzamigo? Não é qualquer personagem fictício que tem endereço, museu, estátua, placa no despenhadeiro onde morreu, selo comemorativo e o escambau.
Mas eu não vim falar do irmão famoso, eu vim falar da caçula! O filme produzido pela Netflix é baseado no livro "O caso do marquês desaparecido", de Nancy Springer, uma das muitas fanfics de Conan Doyle. Pois é, o que não faltam são fanfics usando o personagem fictício mais famoso e mais retratado nas telas de todo o mundo - e como ele está no domínio público, se você escrever uma fanfic de Sherlock Holmes, você pode publicar.
Não do Sherlock da BBC, controlem-se. Esse não tá no domínio público.
Porém também é fanfic, né?
O que tem de especial nesta fanfic é que Sherlock (e seu irmão mais velho, o burocrata Mycroft) são os personagens secundários: o protagonismo está nas mãos da irmã caçula, Enola, uma adolescente de 16 anos que vive com a mãe na casa da família. A educação que Enola recebe é diferente de tudo que você poderia imaginar para uma garota da virada do século 19 para o 20: além de leituras muito variadas, Enola aprende lutas, defesa pessoal - e tudo isso quem ensina é sua mãe. As duas têm uma relação muito próxima, são muito companheiras.
Por isso podemos imaginar quão perturbada fica a garota quando sua mãe desaparece sem deixar pistas.
Bem, isso é modo de dizer. É claro que Eudoria deixa pistas, sim, e isso fica evidente quando os irmãos Sherlock e Mycroft atendem ao chamado de Enola e voltam para casa.
Eu não vou contar a história toda. Enola sai em busca da mãe, sozinha, e encontra diversos tipos de aventuras pelo caminho - veja o filme, é realmente excelente, vale cada minuto! Mas quero comentar minhas impressões.
Para mim, nada no filme se sobrepõe ao seguinte: temos uma garota partindo numa aventura rumo ao desconhecido em busca de sua mãe desaparecida. O protagonismo é feminino, é jovem e o motivador dessa protagonista é o amor, mas não é o romance. É o amor materno. Eu não sou contra romance, gente, eu escrevo romance, né? E tem romance no filme, ou um pouco, enfim, uma fofura, bastante ideal para a idade dela, mas vejam... É tão importante valorizar a força dessa relação de mãe e filha! Quantos filmes nós assistimos com personagens masculinos ou femininos que vivem sob um legado de pai, querer agradar o pai, ou a memória do pai, ou "tudo que aprendi com meu pai" ou atrás de algum mistério que o pai deixou. Parece que a mãe só tá na vida das pessoas (e personagens) pra parir e cuidar, mas não deixa legados. Não tem importância em si, além de sua função criadora (que já devia ser algo reverenciado, mas nem é). Eudoria é a grande referência de Enola, e não é apenas referência emocional. Ela é o exemplo, o modelo, a mestra.
Ao mesmo tempo, fica patente que tudo que a mãe ensinou à filha foi exatamente o que a garota precisava para sobreviver aos perrengues. Enola é destemida e sabe se virar. Ela não duvida da própria capacidade, apesar de sua inexperiência com o mundo - as duas viveram isoladas na propriedade da família. Apesar de solitária e focada, Enola é compassiva. Ao conhecer um rapaz que, no instante seguinte, está com a vida em perigo, ela atrasa sua missão para ajudá-lo, mesmo que isso a tire do encalço da mãe só um pouquinho. Enola não larga sua missão pelo rapaz. Ela o ajuda, cria-se uma conexão, mas seus caminhos se separam e ela volta à sua busca (embora é claro que, em benefício da trama, os problemas de Enola vivam se confundindo com os problemas do marquês).
E tem várias outras coisas incríveis no filme. Desvendando pistas, Enola vai entendendo que a mãe está envolvida num grupo de sufragistas, e os métodos utilizados para os protestos são bastante extremos. Embora fique surpresa, talvez preocupada e até assustada, não há julgamento *moral*, nem da parte da Enola nem como um "recado do filme", digamos assim. O grupo de que Eudoria faz parte reunia-se na casa dela (não sabemos se exclusivamente, mas pelo menos uma reunião a garota testemunhou) e tinha uma composição bem heterogênea. A própria Eudoria era uma mulher da elite, porém o grupo também contava com Edith, talvez minha personagem favorita da história, depois de Enola. A revolucionária e inteligente Edith (a belíssima Susan Wokoma) é dona de uma casa de chá e ensina jiujitsu para mulheres! Ela é uma mulher negra. E gorda. É dela uma das falas mais marcantes do filme:
"A política não interessa a você? Por quê? Porque você não tem interesse em mudar um mundo que já é adequado para você."
E ela diz isso na carinha bonita de ninguém menos que nosso Sherlock Henry Cavill Holmes.
Eu poderia falar de como Sam Claflin está excelente no papel de um Mycroft que eu não estava pronta para odiar. Eu poderia falar de como Henry Cavill entrega um bom Sherlock e faz um trabalho de qualidade, apesar de eu continuar achando que foi uma escalação forçada. Eu poderia falar do quanto me apaixonei por Millie Bobby Brown, do quanto ela é carismática e dona da cena. Das quebras de quarta parede, perfeitas, e de como isso é tão Fleabag. Mas eu preciso destacar neste artigo-comentário aquela que foi minha maior e mais grata surpresa no filme: o reencontro de mãe e filha. Enola tinha tudo para se sentir abandonada, talvez até traída pela mãe. Mas, mais uma vez, o destino escolhido por Eudoria não é alvo de julgamento! O amor entre as duas não é possessivo e a Eudoria é concedido - pela história, pela filha - o direito de ser mais do que mãe. De ser mulher. De ser autônoma. De ser dona de si. Tudo aquilo que ela ensinou à própria filha.
Isso é tão raro de se ver! A libertação dessas duas mulheres é completa!
Encerro com esta frase que mostra a ligação indissolúvel entre o destino autônomo de uma mulher e o destino coletivo de todas. A minha vida só poderá ser minha porque o futuro é nosso.
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