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A carne moída da ficção



A maturidade tem um monte de desvantagens, e tem vantagens, claro, mas algumas são pouco apreciadas. Eu gosto particularmente da possibilidade de avaliar certas mudanças sociais e comportamentais num escopo temporal mais amplo, pois consigo me lembrar bem de como eram certas coisas dez, quinze, vinte anos atrás, pois eu já era adulta.


E eu posso garantir pra vocês que quinze anos atrás não havia tanto estupro e violência contra a mulher na ficção.


Também não havia o debate tão aberto a respeito, o combate, a insistência na denúncia da violência, a cobrança por políticas públicas. A violência praticada contra a mulher, algo que evidentemente sempre aconteceu, veio para o centro do debate com a melhor das intenções: denunciar para punir culpados, para coibir novos episódios, para tirar o véu de privacidade que escondia tantos crimes.


Mas um efeito colateral é que tudo que está em debate alimenta a ficção.


Outro dia meu marido estava vendo uma série que é de thriller e violência - eu não gosto, ele costuma ver essas coisas sozinho enquanto eu leio ou escrevo à noite - e eu pedi que ele me contasse como tinha sido o primeiro episódio. O episódio terminava com um gancho: uma moça era sequestrada. Eu falei: certeza que vão estuprá-la, no mínimo.


E percebi que eu não teria dito isso quinze anos atrás.


Aquilo me entristeceu imensamente. Porque, mesmo sem ter o hábito de assistir produções desse tipo, eu já captei que a mulher virou carne de moer na ficção. A qualquer momento, num livro, filme ou série, quando o/a autor/a quer causar choque no leitor ou espectador, mostrar violência repulsiva/repugnante, é uma mulher que vai se fuder na tela ou no livro. Entramos no debate para nos tornarmos dispositivo de enredo. A facilidade com que hoje uma mulher é violentada na ficção é desarmante. Me tira a alegria, me esvazia de vontade, de fé. Eu odeio esse efeito colateral. É realmente necessário que, para combater a violência, ela precise estar exposta dessa forma no seu enredo? Ou você está usando a revolta do público para tornar sua história mais atrativa?


"Ah, mas mulheres são mais do que isso na ficção hoje em dia, está tendo um avanço generalizado na forma como a mulher é retratada."


Sim, sim, sim, não tenho a menor dúvida disso!


A minha pergunta é: a gente PRECISA pagar desse jeito esse preço para termos protagonismo? Nossas maiores dores PRECISAM se tornar esse plot device batido, previsível, repetido até o ponto de anestesiar a plateia? A gente PRECISA ser a carne moída da ficção? A mulher sofre a sua própria violência e é obrigada a continuar sofrendo perpetuamente a violência de mulheres fictícias, às vezes sob o argumento de que retratar isso também é denunciar - e a meu ver esse é um argumento bem cretino. É perfeitamente possível falar de violência contra a mulher, até em ficção, sem precisar descrever graficamente o ato violento e explorar o pavor feminino, fazendo seu público investir seu tempo de lazer assistindo crueldades grotescas praticadas contra uma mulher. A gente continua precisando ganir e chorar e gritar e ser imolada para que nossa voz seja ouvida, é isso?


Será que quero dizer que a violência contra a mulher deve voltar para debaixo dos tapetes? Ser ocultada? Não. Inclusive tenho um bom exemplo de menção a esse tipo de violência na ficção: a terceira temporada da série Broadchurch. Começando pelo fato de que a vítima não é uma mulher jovem e sexy, terminando por nunca desenhar um retrato de um agressor dominante e forte, mas sim medíocre, vil, baixo e humilhado, a abordagem do estupro nessa série não resvala na atração sexual. Sempre fica claro que é um exercício sádico de poder. Destaque para a sequência do acolhimento hospitalar e policial da vítima, muito bem feita e respeitosa. Me marcou muito. Porque é raro.


Só o que eu peço aqui no meu pequeno alcance é: se você produz conteúdo, pensa um pouco antes de colocar uma mulher sendo violentada na sua história. A quem isso serve? Seu discurso contribui para reduzir a violência ou só serve para nos deixar com mais medo? O efeito será apenas o de traumatizar o público feminino, correndo ainda o risco de excitar parte do público masculino? Por que você desejaria provocar isto? Você está exibindo a dor e o pavor de uma mulher para tornar a história mais interessante e atrativa para o público?


Então me explica por que isso é atrativo.

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