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Balloon Girl

SEXTA-FEIRA

28 julho 2017 ~ Londres

— Today, of all days...1

Logo hoje. Eu não podia me atrasar, merda. Sexta-feira de verão, em pleno centro da cidade, eu tô ferrado com esse trânsito. Não tem nem como evitar a Oxford Street pra chegar lá! Pra que ela foi escolher esse endereço?

Bem, porque ela é esperta e o endereço é movimentado pra caramba, Jesse, é por isso.

Meu celular acusa uma mensagem.

 

Amanda: Chegando??

Jesse: Chegando!

Amanda: Veio no carro que eu te mandei?

 

Reviro os olhos, em silêncio.

Claro que vim. Não gosto, prefiro dirigir eu mesmo, mas vim, né? Seria impossível estacionar aqui.

— Aqui está bom pro senhor? — me pergunta o motorista sério e corpulento.

O homem não disse uma palavra depois de "boa noite, senhor" quando eu entrei no carro na porta do estúdio.

— Está ótimo, obrigado.

Ele destrava as portas e faz menção de sair do carro. Para abrir a minha porta??

Hell, no, sir!

— Não, não precisa. Obrigado mesmo — eu digo bem rápido, abrindo minha porta e saltando para a calçada.

Caramba, será que realmente chegou a hora de ter motorista? Amanda diz que já passou da hora e até a Cathy já anda concordando ultimamente. Acho que elas têm razão, de certa maneira.

— Jay!!

Amanda vem andando na minha direção com passos rápidos.

— Ela quer me matar, não quer?

— Acho que ela já passou da hora de perceber a sua ausência — diz Amanda, segurando meu braço e me empurrando porta adentro.

— Meu Deus, não me diz uma coisa dessas — murmuro, aflito.

Blimey. Isso aqui tá lotado.

— Charlie! Aqui! — Meu pai acena de uma das mesas vermelhas. No colo dele, com a boquinha toda suja de sorvete, Alice se agita e se remexe desconfortável, querendo pular dali ao me ver. — Toma aqui. Ela quer você.

— Hey, sweet darling. — Eu pego minha filha no colo. — Você já tem um favorito, não tem?

— Papai! — ela diz no seu português perfeito demais para 1 ano de idade e todo mundo na mesa cai na gargalhada.

— É um ótimo favorito, mas eu estava falando do sorvete, filha.

Olho em volta e constato facilmente que não tem lugar para mim na pequena mesa. Meu pai, minha mãe, Emma, Timothy e Michael ocupam todos os lugares da maior mesa da mais nova sorveteria de Londres. Todos tomando sorvete, todos de cores diferentes, pelo que posso perceber.

— O favorito dela é Sweet Baby, é claro. — Ouço uma voz conhecida responder e viro para ver Nick se aproximando de nós, já com os braços estendidos para roubar Alice de mim. — Porque foi feito para ela, sem açúcar e todas essas coisas da Kate para bebês, você sabe como é. Agora venha com seu padrinho, boneca.

— Acabei de chegar, caramba, não posso ficar um minuto com a minha filha?

— Não. — Ele sorri, pegando-a no colo. E ela vai na boa, porque Alice é dessas.

— Desgraçado — digo, rindo.

— Eu a estou subornando com sorvete há uma hora, não estou, linda? — ele diz, brincando com ela. — É claro que ela quer ficar comigo, ela sabe o que é bom.

— Feliz aniversário atrasado, Nick. — Eu o abraço, amassando Alice entre nós dois, e ela morre de rir e puxa meu cabelo.

— Porra, não faz isso em público. — Nick me empurra, incomodado. — Vão pensar que eu sou gay.

Não consigo segurar a gargalhada.

— Não posso correr esse risco, você sabe.

— Claro, imagino que acabaria com a sua vida. — Eu continuo rindo. — Mas, de verdade, desculpa ter furado o almoço na terça, esta semana tá um inferno.

— Eu tô sabendo — ele diz, demonstrando pouco interesse. — Mas no domingo você vai, não é?

Ele vai dar uma festa que, segundo ele, não é de aniversário. Só que é.

— Se Londres pegar fogo, eu andarei sobre as chamas. — Prometo, com a mão sobre o peito.

— Não se preocupe, eu mesmo vou providenciar o incêndio — ele diz, dando um beijo na bochecha de Alice.

— Olha pra isso — comento, quando ele coloca Alice no chão segurando-a pelas duas mãozinhas até que ela dê seus passos cambaleantes de volta para o colo do avô. — Tá lotado, cara. Como ela fez isso?

Nick me dirige um olhar de censura.

— Você não conhece essa mulher, não?

— Onde é que eu estava nos últimos dois meses que mal a vi fazer tudo isto?

— Enfiado num estúdio filmando "The Man In The Brown Suit" a toque de caixa, era isso que você estava fazendo — responde Amanda, se posicionando ao meu lado para observar o movimento junto comigo e com Nick.

— E malhando — fala Nick, apertando meu braço e mexendo as sobrancelhas de um jeito sinistro.

— Ah, é. Tem isso — diz Amanda, revirando os olhos.

— E me fazendo rever meus conceitos de amizade e tal — diz Nick, encarando meu braço com malícia.

— Agora eu já casei — alerto, cruzando os braços, o que não o impede de continuar me apertando, só pra encher o meu saco. — Você perdeu sua chance.

— Você já foi casado antes, ora.

— Desta vez é para sempre — eu digo, sorrindo e olhando pra frente.

E, num instante, para sempre é pouco tempo.2 Ela aparece, saindo pela porta que leva à área da cozinha, falando com uma das funcionárias uniformizadas, dando instruções, ouvindo, assentindo, apontando alguma coisa e absolutamente nem percebendo que estou aqui. Linda.

— Fecha a boca, Jesse — diz Nick. — Sua baba tá escorrendo.

— Sweet Jesus...

— Linda, né? — diz Amanda, acho que sorrindo, mas eu não estou olhando. — Finalmente ela me deixou ajudar.

Eu disse "linda"? Maravilhosa. Deslumbrante. Um vestido branco de mangas compridas, estampado com flores roxas, tão longo que ainda nem consegui ver os pés dela. O decote é atordoante. Desce corajoso quase até a cintura dela. O tecido é fininho, dá pra ver daqui, e minhas mãos chegam a formigar de vontade de alisar. Os cabelos um pouco mais curtos do que costume (ela cortou na semana passada) estão soltos mas meio arrumadinhos pro lado, formando umas ondas perfeitas que emolduram o rosto dela e terminam logo abaixo do ombro. Então a compenetrada funcionária assente, vira e volta para a cozinha. E minha mulher me vê, de longe. Eu fecho a boca e engulo a saliva que se acumulou. Ela inclina levemente a cabeça e me lança um olhar reprovador, torcendo a boca. Eu devia pensar "tô ferrado, ela vai me dar a maior bronca", mas eu tô pensando "porra, que mulher maravilhosa, quero levar pra casa". Ela vem andando até mim. "Andando" é modo de dizer. Ela desliza como se se movesse sobre trilhos de tão perfeitos e graciosos que são seus movimentos. Ela tá em câmera lenta ou é meu cérebro? A porra do vestido ainda tem uma fenda de alto a baixo, meu Deus do céu, ela vem como se abrisse o oceano com seus passos, em cima de um salto super alto. A sandália é inteiramente simples, quase da cor da pele dela e sem detalhe algum. Ela não usa acessório nenhum, só um anel que eu dei pra ela no Natal e a aliança. Só. E mesmo assim eu nunca a vi tão sofisticada. Ela ofusca tudo à sua volta.

— Poxa, Jesse... — ela reclama, aborrecida.

— Uau.

Ela entorta a boca, tentando não sorrir da minha cara de embasbacado.

— Achei que você nem vi...

— Não fala uma coisa dessas, você não pensou isso de verdade, pensou?

— Não — ela admite, secamente.

Mas está decepcionada comigo.

— Me perdoa, Cathy, juro que não foi culpa minha. A gente teve um problema com uma daquelas cenas que tinha que ser filmada em uma tomada única, mas não foi. Tiveram que remontar tudo, e tinha que terminar hoje, você sabe que...

— Eu sei — ela me interrompe. — A Amanda foi me explicando, ao longo das horas que se passaram — ela reforça a palavra "horas".

— Desculpa, honey — peço outra vez, escorregando a mão pelo braço dela até segurar sua mão.

Ela está mais alta, mais perto de mim. O salto é realmente alto. E o tecido do vestido é tão macio quanto eu imaginei.

— Caramba, você tá maravilhosa — eu digo, sem me conter.

— Você também — ela sorri e finalmente me beija.

Mas mal começou o beijo e já acabou. Que droga.

— Tá mais bonita do que no Oscar — diz Amanda, que não perde a oportunidade.

— Ela estava linda no Oscar, Amanda.

— Prepare-se que ano que vem tem mais — diz Amanda, esfregando as mãos e olhando para Catarina com um sorriso confiante.

— Com certeza tem — devolve Cathy, com o mesmo sorriso. — Só que desta vez vai ser pra ganhar.

— Não tem nada este ano que seja sequer remotamente comparável a esse Iago — afirma Amanda, com o dedo erguido.

As duas continuam conversando entre si sobre minhas chances no Oscar sem nem olhar pra mim.

— Ser indicado já é muita coisa, vocês duas — digo. — Vocês sabem quantas pessoas têm um Oscar?

— Um monte de gente. — Amanda faz um aceno displicente.

— Só o Tom Hanks tem dois — diz Catarina.

— É o Tom Hanks! — exclamo, abrindo os braços.

— Você é melhor do que ele — Catarina fala como se isso não fosse nada.

— Parem com isso, pelo amor de Deus — peço, enquanto Amanda ergue a mão espalmada pra Catarina bater. — Vocês estão assassinando meu senso de proporção a pauladas.

As duas riem de mim mas são interrompidas pelo celular de Amanda. Ela o tira do grande bolso do seu vestido e olha o display.

— Ah, eu tenho que atender isso — diz, se afastando rapidamente.

— E eu já tenho que ir — diz Nick.

— Já? Acabei de chegar, cara — reclamo.

— Ele chegou aqui antes das cinco, Jesse — Cathy informa, sorrindo e passando a mão carinhosamente sobre o terno de Nick.

— Viu? — ele diz, erguendo as sobrancelhas e olhando pra mim com um sorriso vitorioso.

Eles se abraçam apertado e ela segura a cabeça dele com as duas mãos para dar-lhe um beijo na bochecha. Ele sussurra alguma coisa no ouvido dela e ela ri. Depois ele aperta meu braço de novo e me sopra um beijo antes de ir embora.

— Você roubou meu melhor amigo — eu digo, vendo ele se despedir de Alice.

— Desculpa, amor.

— Eu não ligo, na verdade amo ver vocês dois juntos — digo pra ela, com um sorriso. — Honey, isso aqui está incrível. Eu tô impressionado.

— Ficou legal, né? — ela diz, sorrindo orgulhosa.

— Legal? Cathy, isso aqui tá perfeito.

A loja não é grande. Depois que se entra pela porta de madeira branca, passando pela linda vitrine envidraçada, são sete mesas vermelhas de madeira laqueada, cada uma com quatro cadeiras de encosto redondo, só uma das sete mesas tem seis lugares. As paredes são brancas com a marca da sorveteria desenhada aqui e ali em rosa e vermelho. No fundo, o balcão de sorvetes não é muito largo, já que a própria loja é estreita, mas tem duas fileiras de cubas de inox. Ela já inaugura com 36 sabores. Isso mesmo: 36 sabores. Desde a inauguração. Um exagero. É a cara dela.

— A Angela ajudou pra caramba nas últimas duas semanas nas redes sociais. Ela foi incrível, Jesse. Ela e o Steve, claro — ela diz, apontando o rapaz magrinho de óculos e ar compenetrado, sentado no banco atrás do caixa. — Ela já foi embora porque não estava se sentindo bem.

— É mesmo?

Catarina sorri.

— Eu acho que a Angela tá grávida.

— Jura??

Cathy ergue as sobrancelhas e faz que sim com a cabeça, segurando um grande sorriso.

— E acho que ela já sabe, os dois sabem, não sei por que não me contaram ainda. Mas eles são incríveis. Angela fez uma promoção incansável.

— Ela sabe do que está falando.

— Sabe mesmo! Ela provou todos os sabores — conta, se apoiando no meu ombro pra descansar.

— Ela, a Emma, o Timothy...

— Ele não, mas o Michael, sim. O Timothy não abusa de açúcar, ele é atleta agora — ela fala, fazendo uma careta engraçada.

— Menos eu, né?

— Hum, que pecado — ela brinca, fazendo bico e se esticando pra me beijar. — Você ainda não foi servido? Vem, vamos remediar isso antes que você comece a difamar nosso atendimento no seu twitter logo no primeiro dia.

Ela me puxa por entre as mesas até o balcão onde um rapaz uniformizado de cachos pretos amassados sob a touquinha com o símbolo da loja atende um cliente que se debruça sobre o balcão com os olhos perdidos em tantas opções coloridas.

— Qual você vai querer? — ela pergunta.

Olho para ela atrás do balcão e meu coração alça voo. Que memória maravilhosa, perfeitamente viva. Que viagem no tempo. O tempo é um negócio bem relativo mesmo, não é? É tão forte a sensação de nos vermos novamente nesta situação que é como se eu estivesse relendo meu livro favorito, que sempre vai estar ali, disponível na minha mesinha de cabeceira, para reler e reviver todas as emoções, como se fosse a primeira vez. A primeira leitura. A primeira emoção.

— Maracujá. Com canela, se eu tiver direito a duas bolas logo no primeiro dia.

— Você tem, mas não é preciso — ela diz, enrolando o cabelo e cobrindo a cabeça com uma das touquinhas padronizadas. — Aqui, nesta sorveteria, maracujá e canela fazem um sabor único.

— Jura?

Ela faz que sim, sorrindo orgulhosa.

— É. Eu inventei a combinação anos atrás e agora desenvolvi a mistura definitiva dos dois sabores.

Ela desliza a portinha de vidro para abri-la e enfia a colher numa massa amarela brilhante de sorvete com a plaquinha onde se lê o nome "Perfect Passion".

Adequado. Muito adequado.

Ela me estende a tigelinha transparente com uma colherinha espetada em cima da bola de sorvete. O amarelo vivo do sorvete é rajado de uma calda cor de caramelo cuja cor tem uma semelhança perturbadora com a cor dos olhos dela. O cheiro é absolutamente fantástico. Indescritível. Forte. Não espero nada menos do que a perfeição aqui e é o que eu recebo. Meu Deus, o sabor é incrível. Ainda sobe direto pro meu cérebro, congelante, doce, azedo, perfumado.

— É bom? — ela pergunta.

Tenho a impressão de que sua voz soa ansiosa, mas não vejo seu rosto porque, honestamente, eu fechei os olhos assim que o sorvete encostou na minha língua. Se é bom? Um riso baixo escapa da minha boca quando me lembro daquele primeiro café da manhã, na cozinha da casa dos pais dela em Arbusto.

— Fucking fantAstic.

Adivinho o sorriso dela, mesmo de olhos fechados.

— É diferente daquela estreia, porém.

— Eu imaginei — ela diz.

— É melhor — digo, abrindo os olhos.

— É mesmo? — ela pergunta, com um sorriso cético mas esperançoso.

— Ah, sim. — Coloco mais uma colherada na boca. — Hum. Veja, eles não estão mais brigando um com o outro, sabe?

Ela ri baixinho, entendendo a referência.

— Eles agora se completam, formaram uma coisa única. É uma fusão perfeita. Amálgama. Não é a palavra que eu quero, droga, não tô achando...

— Hum... Seria, talvez... Um casamento? — ela arrisca, debruçando-se sobre o balcão e sorrindo pra mim.

— Isso — respondo, encarando-a sem reservas. — Essa é a palavra, honey. É um casamento perfeito.

 

 

3Eu tô exausta. Como achei que eu podia dar conta de fazer isto aqui sozinha? Quer dizer, claro que não fiz completamente sozinha. Tenho três funcionários: o Raimundo e a Betânia, meus dois atendentes brasileiros (olha, eu fiz questão, sim, e facilitou muita coisa, além de que foi muito mais fácil encontrá-los do que eu imaginei!). Meu único funcionário inglês é o Steve, que é noivo da Angela. Então, sim, eu tenho um vício de me cercar de gente conhecida, familiar, gente em quem eu possa confiar mais facilmente. Sou arbustense. É meu jeito de fazer negócio, se é que eu tenho mesmo isso, um jeito de fazer negócio. Bom, eu sou uma empresária agora, eu tenho que ter! Se for um jeito errado, o tempo vai dizer, mas eu tenho um jeito de fazer negócio, sim. E eu tenho que admitir que tô me sentindo um milhão de vezes mais empresária hoje do que me senti quando assinei o papel lá da Sorveteria Wilson, dois anos atrás. Pra começar, tudo lá já estava pronto há 50 anos, a gente só tinha que administrar. A Sorveteria Wilson não tem que provar nada a ninguém em Arbusto, praticamente nem tem concorrência. E eu era uma pirralha de 21 anos entrando de sócia no negócio que, na verdade, na real, era gerido pela minha mãe. Aqui eu sou uma pirralha de 23 anos que tem que dar conta de tudo.

E, quer saber? Eu vou dar conta, sim.

Mamãe tá nervosíssima lá no Brasil. Já fizemos umas dez chamadas de vídeo desde que cheguei aqui hoje. Ela e a Gabi organizaram uma puta festa hoje lá na sorveteria, em comemoração à minha inauguração aqui. Eu não sou uma filial, eu sou outra coisa, né? Mas no fundo é como todo mundo me vê, de lá. Tudo bem. Eu gosto. Eu amo. Todo mundo reunido lá, gritando comigo no telefone, meus pais, minha irmã, meu cunhado, minhas melhores amigas.

E todo mundo reunido aqui. Meus sogros, meus enteados, Emma, Nick, Amanda, toda essa gente que o Jesse diz que eu roubei dele. Menos Alice, claro. Alice é minha.

— Tá muito tarde, Jesse, ela tem que ir pra casa — eu digo para ele pela décima vez, vendo-a dormir profundamente no carrinho ao lado da cadeira do avô que nunca desgruda dela.

— Tá certo. — Ele suspira resignado.

Ele sabe que eu tenho razão, mas não tem nem uma hora que ele chegou e não queria ir embora ainda. Eu também queria que ele ficasse até o fim aqui comigo, mas me corta o coração ver Alice cansada.

— Catherine, não se incomodem com isso hoje — diz Stella. — Nós podemos levá-la e colocá-la pra dormir em casa.

— Eu vou junto, tô com a minha chave, pai — avisa Timothy, batendo no bolso do jeans. — Eu conheço toda a rotina de dormir da Alice.

— Eu também, ora — rebate Stella, olhando para o neto com as sobrancelhas erguidas, muito ultrajada pela sugestão de que ela precisaria de ajuda.

Eu começo a rir dos dois.

— Você acha que tudo bem? — Jesse vira pra mim e me pergunta bem baixinho, chegando bem perto do meu rosto.

— Você quer saber se eu confio que sua mãe pode botar a Alice pra dormir em casa?

— Isso.

— Sendo que ela já tá desmaiada no carrinho?

Ele ri.

— Isso.

— Não vai ser difícil, Jesse, acho que ela vai dar conta. — Dou um tapinha no ombro dele. — E, afinal, ela tem a ajuda do Timothy.

Jesse sorri e vai organizar a partida de todos. Fica combinado que eles vão no carro com motorista que trouxe o Jesse até aqui e depois eu e Jesse voltamos pra casa no meu carro. Alice acorda no processo, então nós nos despedimos dela como deve ser, e ela vai sem problemas no colo do avô. O apego ali é mútuo. Antes de se afastar da mesa, ela vê seu potinho pela metade e exige mais sorvete, que não é nada boba. George segue com ela no colo, com a boca suja de sorvete, seguidos por Timothy e Stella, que conversam muito animados, provavelmente sobre a divisão de tarefas na complicadíssima missão de botar uma criança pra dormir e, mais atrás, Emma e Michael, levando seus sorvetes nas mãos e acenando para nós. Eu e Jesse observamos de longe enquanto a família segue para a porta de saída.

Duas clientes dirigem-se para a saída logo atrás de Timothy e Stella. Uma delas comenta com a outra, sacudindo a cabeça de forma reprovadora e olhando para Alice:

— Essas crianças de hoje em dia, no colo ainda, e já se entupindo de açúcar. Queria só saber onde está essa mãe irresponsável que não zela nem pela alimentação da bebê. Depois vão reclamar que a menina está gorda.

Oi?

Como é que é?

A escalada da fúria dentro de mim é um negócio assustador. Eu já tô dando um passo à frente para responder quando Jesse segura meu braço.

— Calma. Suas clientes. Sua inauguração.

Mas lá perto da porta, não tem ninguém pra segurar o braço da minha sogra. Timothy só observa, com muita atenção, quando Stella vira para as duas mulheres com o rosto alterado.

— Pois fiquem sabendo as senhoras que estão muitíssimo enganadas! — ela protesta em voz alta, erguendo o indicador. — A bebê é minha neta e tem uma mãe maravilhosa! Aliás, ela tem pai também, por acaso não é só tarefa da mãe cuidar da menina, sabiam? E esse sorvete foi desenvolvido pela própria mãe dela, especialmente para bebês, e não contém nem açúcar nem conservantes, só leite e frutas, não que eu tenha que dar satisfações da alimentação da minha neta para vocês, é claro. Mesmo assim, ninguém vai reclamar de coisa nenhuma se ela for gorda, ou verde, ou o que ela vier a ser, podem ficar muito tranquilas quanto a isso. De qualquer forma, não posso deixar de dizer que esse sorvete é tão bom que vocês deviam voltar e experimentar — ela encerra, deixando todo mundo petrificado, inclusive George, na calçada, com Alice no colo. Os olhos dele estão arregalados.

Aliás, a expressão do Jesse é uma cópia idêntica da cara do pai dele.

Indignada, Stella balança a cabeça e revira os olhos antes de pegar Timothy pela mão e arrastá-lo, espantadíssimo, para fora da sorveteria. Não preciso dizer que as duas clientes não voltaram para provar o Sweet Baby e eu tô me perguntando se algum dia voltarão pra tomar qualquer coisa aqui.

Emma vira pra mim com os olhos arregalados.

— Eu te disse, não disse? Que ela ainda ia comer na sua mão?? — ela sussurra, segurando uma risada.

A esta altura eu já estou morrendo de rir dessa cena inacreditável. Depois que todo mundo sai, eu olho pro Jesse e ele está com um sorriso beatífico no rosto.

— O alívio que eu sinto quando vejo minha mãe assim com você...

— Assim, bélica? — eu pergunto.

— Bélica com os outros, né? Defendendo você!

— Eu sei, Jesse, achei fofo, juro.

Ela tem uma veia combativa, a minha sogra, isso não se pode negar. Pelo menos agora está bem direcionada.

Então Jesse fica comigo até o final, do jeito que eu queria, e hoje vamos ficar até o último cliente. Já passam das dez da noite quando Raimundo, muito sorridente e finalmente mais confiante, fecha a porta atrás do último freguês satisfeito. Minha vontade é correr e dar um abraço nele e na Betânia e, bom, é exatamente o que eu faço. Mando os dois pra casa com urgência. Amanhã abriremos às onze e ficaremos até as oito da noite, isso vai ser nosso horário normal. Porque é verão e não escurece nesta desgraça de hemisfério norte, então vai ter turista na rua até bem tarde. Por enquanto eu não tenho funcionários suficientes para ficar aberta doze horas, mas o objetivo é esse até o final do ano.

— Mrs. Yoll?

Ai, Cristo.

Quando eu vou me acostumar com isso, gente? Acho que nunca.

— Steve, pelo amor de Deus, me chama de Catarina, ou Cathy.

— Ah, não. Não me acostumaria nunca com isso — ele diz, com veemência. — Você é minha chefe.

— Mas, meu Deus, cara, antes disso eu já era amiga da sua noiva!

— Eu já estou deixando tudo organizado no caixa para amanhã — ele diz, me ignorando e batendo a caneta num bloquinho nervosamente. Suas bochechas estão vermelhas quando ele olha pra mim de novo. — Ah, ok, eu vou tentar. Catarina.

Eu sorrio da pronúncia engraçada.

— Tá ótimo, Steve, obrigada.

— Você precisa que eu fique para fechar? Vi que você já mandou os atendentes para casa.

— Não precisa, você pode ir — digo, acompanhando-o até a porta. — A Angela deve estar precisando de você.

— Eu liguei pra ela. Ela me disse que já está melhor. Tem estado meio tonta nestes...

Aí ele para de falar de repente e olha pra mim, assustado. E eu começo a rir.

— Ela tá grávida, não tá?

— Ela vai me matar, mas... É bobagem dela, não te contar — ele diz, balançando a cabeça. — O casamento é daqui a três meses e ela já tinha o vestido. Ela tá com raiva porque não vai caber no vestido, mas não queria falar nada pra você porque não queria que parecesse que estava te julgando, porque você casou grávida. Ela é doida — ele termina, rindo feliz, e eu rio junto.

— É bem a cara da Angela. Mas ela não ia conseguir esconder por muito tempo, né?

— É claro que não.

— Então não se sinta culpado por ter me confirmado — digo, dando um tapinha nas costas dele. — E diz pra ela que eu vou adorar ir com ela escolher um novo vestido de noiva para grávidas. Eu tenho larga experiência nisso, sabe? Casei duas vezes, em diferentes estágios de gravidez.

Ele dá uma risada e nós nos despedimos na porta da sorveteria.

Agora está tudo vazio nesta casinha de bonecas branca, rosa e vermelha. A sensação é de cansaço e conquista, estranha e meio amedrontadora. Não me sinto em casa, ainda, mas me sinto dona e conhecedora de cada detalhe, porque nada aqui se fez sem mim. Tudo aqui sou eu, uma parte nova de mim. E é perfeito. É do jeito que eu queria que fosse. Mesmo sabendo das coisas que não funcionaram como deveria, pois já era pra ter a máquina de frozen e frapê para os cafés e as tigelinhas de sorvete são genéricas, compradas semana passada, porque as personalizadas com a marca não ficaram prontas a tempo. Mesmo assim é perfeito. Por tudo que ainda vai ser.

Um barulho duro e seco chama a minha atenção e eu viro para olhar. Jesse está baixando a porta interna, atrás da vitrine. Ele tá um absurdo de bonito. Eu só queria ter tido mais tempo pra ficar admirando. Calça preta, camisa branca aberta no colarinho e um paletó roxo sensacional. As lapelas são de veludo, mais escuro que o resto. Sério, tá uma vibe meio Doctor Who, sabe? O que, pra mim, quer dizer que tá lindo e um tesão. E combina com as flores do meu vestido, o que é só um bônus da sorte, porque nós nem combinamos nada. Na última semana a gente mal se falou, eu arrumando as últimas coisinhas da inauguração da sorveteria e ele filmando uma minissérie que tem o calendário mais apertado que a televisão britânica já viu, o que se deve inteiramente à agenda dele próprio.

Jesse termina de puxar a cortina pesada que fica por cima da porta interna da vitrine e olha pra mim. Um cacho do cabelo dele escapa até o meio da testa e ele passa a mão rapidamente. Não adianta muito, a mecha rebelde volta. Ele me encara, abrindo lentamente um sorriso tão explícito que me dá até um arrepio.

— Então... — ele diz, andando na minha direção e parando na frente da porta fechada. — Você é dona de uma sorveteria.

— Sou.

— Bom.

— Bom? Da primeira vez que isso aconteceu você não gostou muito.

O sorriso desaparece e os ombros dele despencam.

— Poxa, não diz isso... Eu me envergonho tanto daquilo.

— Desculpa. — Eu sorrio pondo as mãos nos ombros dele. — Não liga, já passou.

Nossa, o tecido desse paletó é muito macio. Meio aveludado. Não consigo resistir a ficar alisando um pouco. Um pouco mais.

— Finalmente Londres tem uma sorveteria — ele diz, olhando bem no meu rosto.

— Londres deve ter umas mil sorveterias, Jes.

— Mas nenhuma delas era sua. Não é mesmo? — ele diz, erguendo uma única sobrancelha.

Eu olho pra ele, desconfiada. Ele pigarreia discretamente.

— O que quer dizer que eu não podia... fechar a sorveteria no fim do expediente. Como estou fazendo agora — ele diz, indicando a cortina da porta de entrada com um sorriso tímido.

Ele está pensando no que eu penso que ele está pensando?

— Quer ajuda? — ofereço, indo até ele.

— Eu alcanço — ele diz.

Mas seu olhar viaja pelo meu corpo e ele não tenta mais esconder o sorriso.

Não acredito. O Jesse quer transar aqui.4

— É o protocolo — digo, me esticando para segurar a alça junto com ele. — Você sabe como é.

E acontece que, vejam só, eu alcanço. É mais baixa do que a porta da sorveteria Wilson, em Arbusto, e eu estou usando estes saltos super altos. Mas ainda é preciso que eu me estique um pouco e, assim, a frente do meu corpo encosta no corpo dele. Ele me enlaça pela cintura com o braço esquerdo e seus olhos investigam os meus enquanto descemos a cortina que agora esconde a porta da frente.

— Você planejou isso? — pergunto, curiosa de verdade.

— Não.

Eu sorrio.

— Você planejou? — ele pergunta, erguendo uma sobrancelha só.

Daquele jeito.

— Dizer que eu planejei seria demais. Digamos que eu me certifiquei de que as mesas são bem firmes e que meu vestido abre facilmente.

Jesse sacode a cabeça, fazendo um barulho que parece um rosnadozinho sexy pra cacete. Então me envolve com os dois braços apertados em volta da minha cintura e, num movimento bem rápido, me ergue no ar e me beija na boca. Eu lembro quando falava essas coisas para provocá-lo. Para provocar nele a mudança que ele mesmo diz que eu operei em sua vida nos últimos anos. Eu gostava de ver em seu rosto a reação de surpresa, choque ou ultraje com minhas sugestões diretas e ousadas. A reação dele era uma recompensa para mim. Hoje eu sei que não choco mais em nada este homem, sei que ele espera e deseja que eu seja esse furacão que ele diz que eu sou. Hoje o que sai da minha boca é pra não decepcioná-lo. Pra dar a ele o que ele espera de mim.

Ah, e também porque é verdade. Porque eu realmente testei essas mesas. Sentei em todas elas e me balancei com vontade. A cara do Nick, por um segundo, foi de confusão. Então ele de repente entendeu e gargalhou tão alto, mas tão alto que a Angela e o Steve vieram lá de dentro ver o que estava acontecendo.

Depois de andar pela sorveteria me carregando, me arrastando e me beijando, ele me põe sentada sobre uma delas e me beija mais intensamente. Ele enfia as mãos por dentro do meu vestido, que se abre como pétalas de uma flor pra ele, fácil, sem impor nem mesmo um desafio. A fenda se abre, os ombros descem, a gente mal percebe que o vestido tá aqui. O vestido é lindo e foi por isso que eu o escolhi, e não por ser mais fácil de invadir do que a Polônia. Mas essa vantagem não me passou despercebida. Tampouco ele está deixando passar. Suas mãos estão por toda parte, me tocando, acariciando e seduzindo, enquanto sua boca não deixa de me beijar por nem um segundo. Não sei se ele decidiu não tirar a roupa, mas, pra variar um pouco, eu estou topando deixá-lo vestido hoje. Tem alguma coisa de mágico nisto aqui. A cena é real, mas parece um filme. Pela primeira vez em anos com ele, eu me sinto como numa fantasia de cinema, num cenário colorido, plástico e irreal. Transamos de roupa, suando em cima de uma mesa vermelha, na penumbra silenciosa da primeira noite da minha sorveteria em Londres.

— Ah, minha nossa, Cathy... — ele murmura, passando a mão no rosto.

Eu sorrio e enxugo o suor do rosto dele. Que homem... Cada dia fica mais bonito, juro...

— Não achei que íamos continuar fazendo esse tipo de coisa depois de casados — ele diz, ofegando.

Não mesmo?

Eu achei que sim.

— Você começou.

Ele me olha, inclinando a cabeça, pensativo. E então sorri.

— Comecei, não foi?

— Foi, sim.

Ele fecha a calça e me dá a mão para me ajudar a descer da mesa.

— Pois agora está inaugurada de verdade. Como deve ser.

— Today of all days, hum? — eu comento, ajeitando meu vestido.

Ele estreita os olhos pra mim, intrigado.

— Você lembrou? Dos cinco anos da invasão do meu quarto?

— Claro que lembrei, Jesse. Fui eu que invadi, né?

— "Claro" coisa nenhuma, você é péssima com datas, Cathy — ele diz, indo buscar minha bolsa atrás do balcão.

É até verdade, ou foi verdade. Mas parece que com ele tudo é diferente e eu fui me tornando mais apegada a datas. E a prova é o dia de hoje.

— Jes, você acha que foi coincidência?

Ele olha pra mim, surpreso.

— Não foi?

— Foi totalmente intencional, Jesse — digo, com a mão na maçaneta.

— Verdade? — ele pergunta, com um sorriso lindo no rosto.

Então abro a porta e deixo que o vento fresco da noite de verão londrina bata em nossos rostos. Viro para trancar a porta e ele dá mais alguns passos, na direção do carro. Quando o alcanço, ele me dá o braço, como o lorde que ele é. E então ele para e olha pra cima, para o letreiro da sorveteria. Um sorriso de compreensão se abre em seu rosto.

— Não pelos cinco anos da invasão, é claro — diz.

— Não, Jes. — Eu me aproximo dele olhando para o letreiro também. — Pelos cinco anos da estreia de Balloon Girl.

Ele passa a mão livre pela minha cintura e me abraça. O grande balão vermelho pisca para nós dois do letreiro acima do toldo que diz "Balloon Girl Ice Cream Shop". A gente fica um tempo ali, feito dois bobos, olhando para a casinha que vai me abrigar a maior parte dos meus dias daqui pra frente. É perfeita para mim. Assim como ele.

A expressão de orgulho e felicidade no rosto do meu marido é muito nítida.

— Você tá todo bobo por causa disso, não tá?

— Você sabe como me emocionar — ele diz, encostando a cabeça na minha e me dando um beijo nos cabelos. — Tô ficando velho?

— Claro que tá, todos nós estamos.

— Você tem 23 anos, por favor. — ele diz, revirando os olhos.

Eu abro o carro e sento no banco do motorista. Ele senta ao meu lado enquanto eu coloco meu cinto.

— Eu tava pensando em "Balloon Girl" — ele diz, afivelando seu cinto, depois de jogar minha bolsa no banco de trás. — Fazer uma sequência, talvez.

— Jesse, que tolice. — Eu estalo a língua em desaprovação e dou partida no carro. — Não faça sequências, isso é falta de criatividade. As pessoas vão dizer que você não tem novas ideias, que não sabe desapegar.

Ele ri. Eu manobro o carro para sair da vaga apertada. Dirigir no centro de Londres me tornou uma motorista cem vezes melhor do que eu já era.

— Bem... Talvez as pessoas estejam certas. Eu não quero desapegar de "Balloon Girl".

— Foi o que eu disse.

— Hum. Mas você... quer que eu desapegue de "Balloon Girl"? — ele pergunta devagar, arqueando a sobrancelha.

Eu estreito os olhos pra ele, ameaçadora, e ele sorri.

— Não ouse, Jesse Yoll. Nunca.

— Nunca, Cathy Yoll.

 

❣❣❣

1Who You Love, John Mayer feat. Katy Perry.

2Teenage Dream (Acoustic), Katy Perry.

3The One That Got Away, Katy Perry.

4Unconditionally, Katy Perry.

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